A recente suspensão judicial dos efeitos da Lei n.º 14.434/22, que estabeleceu o piso nacional dos profissionais da enfermagem, gerou menos indignação com o Supremo Tribunal Federal que era esperado. Por quê?
A resposta é simples. Desde as primeiras aulas, os alunos de Direito aprendem que as regras jurídicas (mundo do “dever ser”) não são capazes de alterar, por si, dados da realidade (mundo do “ser”). Não é possível que o Congresso Nacional revogue a lei da gravidade.
Isso ocorre porque o Direito se dirige à conduta humana, por meio de comandos e incentivos que direcionam o comportamento de indivíduos, empresas, ONGs e governos. Mas, mesmo as normas de comportamento, encontram barreiras à sua observância. Não é possível que o Congresso Nacional determine que as pessoas desobedeçam à lei da gravidade.
Não por outro motivo, as determinações legais voltadas ao poder público submetem-se a assim denominada “cláusula da reserva do possível”. Segundo tal teoria, a inexistência comprovada de condições materiais, financeiras e orçamentárias é capaz de justificar o descumprimento estatal de deveres voltados à concretização dos direitos sociais.
Tal condicionamento foi parcialmente observado no piso da enfermagem. Isso porque a Lei n.º 14.434/22 apenas produzirá efeitos aos servidores públicos após a adequação da legislação orçamentária de cada ente federativo. É o que determina a própria Emenda Constitucional n.º 124/22, que previu a instituição do piso.
O problema, contudo, não foi resolvido para os profissionais de enfermagem que são vinculados a entidades beneficentes de assistência social e organizações sociais. Esse setor é responsável por cerca de 60% dos procedimentos de média e 70% dos procedimentos de alta complexidade no país. E, assim como os servidores públicos, depende do repasse de recursos orçamentários da União, dos Estados e dos Municípios.
É dizer: a maior parte dos profissionais que prestam serviços ao SUS depende também de conduta do poder público, que precisa realizar as adequações contratuais, orçamentárias e financeiras necessárias ao aumento do repasse de recursos ao setor filantrópico e sem fins lucrativos.
A decisão do STF afastou temporariamente o risco econômico, social e sanitário decorrente do iminente colapso do SUS. Ao estabelecer prazo para que os atores envolvidos apresentem propostas de solução do impasse, o STF impôs aos poderes de Estado a tarefa de adequar à realidade, de modo a tornar possível atender à nova previsão legal. Mas o problema do SUS não se restringe ao piso: somos o maior sistema universal de saúde do mundo e contamos, paradoxalmente, com o menor gasto per capita em saúde pública do globo.
Com apoio do STF, o SUS sobreviveu e fez-nos sobreviver à maior pandemia da história. Que a decisão sobre o piso da enfermagem impulsione uma discussão profunda e honesta acerca do grave problema do financiamento da saúde pública no Brasil. Para o bem dos profissionais da enfermagem e do SUS, o que menos precisamos neste momento é de mais uma solução improvisada, paliativa e inconsequente.
*Fernando Borges Mânica é doutor em Direito pela USP e professor do Mestrado em Direito da Universidade Positivo (UP).
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